Por onde começar quando a cidade se chama Istambul?
Torre de Babel, onde vivem cerca de 19 milhões de pessoas vindas dos quatro
cantos do mundo. Não são números oficiais, mas apenas suspeitas daqueles que
vêem a cidade a crescer, ao mesmo tempo que se multiplica o número de mesquitas
e centros comerciais mandados erguer pelo atual governo.
As eleições municipais são já a 30 de Março e o ambiente
está quente, sobretudo depois dos recentes escândalos de corrupção que envolvem
o primeiro-ministro turco. Há 11 anos no poder, Recep Tayyip Erdoğan é acusado
do desvio de mil milhões de euros dos cofres públicos.
Mas o que aqui nos traz faz-nos esquecer a situação
política e os violentos protestos na Praça Taksim. Istambul significa a entrada
num mundo onde se confundem o laico e o religioso, o místico e o moderno, o
bairrista e o cosmopolita. Depois há a outra Turquia.
Um país que chegou até mim através dos filmes de
Fatih Akin, da música de Shantel, das ilustrações de Selçuk Demirel, de uma
telenovela brasileira e de dois hóspedes que recebi através da rede
Couchsurfing.
À chegada a Istambul o que marca não é tanto a
língua, aglutinante, mas antes o ritmo vibrante da cidade só interrompido pela
pausa para o chá, ou “chay” em turco. Afinal, estamos com um pé na Europa e
outro na Ásia à distância de um ferry ou de uma ponte.
Com tantas pontas soltas, o melhor é começarmos pelo
início, ou seja, pelo pequeno-almoço, a maior e mais importante refeição do dia
para os turcos. Portanto, não se espante se em vez de um convite para jantar
receber um convite para o pequeno-almoço. À mesa, sal. Muito sal. Pão, folhados
de queijo, pimentos, mais três tipos diferentes de queijo, azeitonas, tomate,
pepinos e, claro, chá em abundância.
Em Besiktas, onde fico alojada, no domingo de manhã as
pessoas fazem fila nos cafés. No menu do pequeno-almoço há menemen, sucuk, simit… Vai ser assim durante toda a tarde, porque
afinal a noite foi longa para os mais jovens em Istiklal.
Bem conhecido dos portugueses, Besiktas surge
inevitavelmente associado ao clube de futebol. A águia à entrada do bairro
mostra a importância do emblema preto e branco que se encontra na terceira
posição do campeonato turco. Em Besiktas, bairro situado na zona de Bósforo, respira-se
o verdadeiro dia-a-dia turco, feito sobretudo de comércio e restauração. No
entanto, a nossa tour deve passar
obrigatoriamente pela pérola do império otomano, Sultanahmet. É para lá que vou
antes da partida para a Capadócia.
Cheira a peixe fresco na Ponte Galata. De manhã à
noite, faça chuva ou sol, é o spot
favorito dos pescadores de Istanbul, que religiosamente ocupam os poucos
espaços deixados vagos no corrimão. Um ritual que muitos dizem ser de meditação,
apenas quebrado por um doce tilintar. Ao fundo da ponte, já se ouve o vendedor
ambulante de chá que apregoa “chay, chay, chay!”. No piso inferior do tabuleiro,
os restaurantes preparam-se para receber mais uma enchente de turistas para
almoço.
Perco-me umas horas no Palácio Topkapi, entre
sultões da antiga Constantinopla e um Harém, outrora povoado por concubinas e
eunucos. Não muito longe avisto a Mesquita Azul que chama os fiéis para a
oração do início da tarde. É o Azan. Os turistas, esses são convidados a sair.
Sem pressas voltarei nos próximos dias a Sultanahmet.
Na Capadócia, “Natureza” escreve-se com letra maiúscula
De Istambul à Capadócia distam entre si 600km. Para
os mais resistentes, as 10 horas no autocarro noturno passam a correr, mas se
não abdicar de uma noite que seja em Istambul, um voo doméstico até Kayseri
leva menos de uma hora.
Göreme é o ponto de partida de uma viagem que lhe
promete arrancar muitos “Uaus” e “wow’s”, dependendo da nacionalidade. Mas será
também um lugar onde pode, em silêncio, observar o incrível poder da natureza e
talvez, porque nunca é tarde demais, fazer as pazes com ela.
Admiramos imensos vales: vermelhos, verdes,
castanhos de onde se elevam imponentes formações rochosas, que os vulcões deram
e o ser humano aproveitou, construindo há milhares de anos casas, igrejas,
armazéns e abrigos. Património da Humanidade da UNESCO, o Museu ao Ar Livre de
Göreme é apenas um exemplo do engenho dos monges cristãos, que aqui se fixaram
no século III. É a maior concentração de grutas na região e dentro delas pode
admirar os frescos com motivos religiosos, incluindo S. Jorge no seu cavalo.
Para trás deixo o complexo monástico e rumo a Göreme
com o objetivo de confortar o estômago, mas a caminho sou atraída pelas enormes
“chaminés” que compõem o “Love Valley”.
Porque os olhos também comem, decido matar esta fome primeiro. Uma
extraordinária paisagem cónica por onde podemos serpentear calmamente. Usadas
sobretudo por agricultores, que ali conservavam colheitas, fazem parte de uma
das muitas maravilhas da Capadócia, tal como Devrent, Ihlara e Pigeon Valleys.
Próxima paragem: cidade subterrânea de Kaymakli. Das
existentes, trata-se da menos turística, mas curiosamente a maior
horizontalmente, com oito níveis e cerca de duas mil divisões. Dentro, uma
temperatura constante de 15 graus. Para perceber os meandros deste labirinto
subterrâneo é necessária a ajuda de um guia, que se pode contratar no local. Só
assim saberá, entre outras coisas, que Kaymakli era usada como abrigo em tempo
de guerra e que possuía um avançado sistema de ventilação, que para além de ar
fresco servia como ponto de vigia.
Não escondo o entusiasmo pela viagem em balão de ar
quente que me obriga a acordar às cinco da manhã. A oferta é muita e a sugestão
é que não aceite preços na ordem dos 150 euros por uma hora de voo. Na Turquia
regatear é a palavra de ordem, logo faça uso disso. É que os valores podem cair
para os 80 euros por pessoa.
Cartão de embarque na mão e de repente já estamos lá
em cima, junto das dezenas de balões que pintam de cor os céus da Capadócia. Se
calcorrear estes vales é entrar num mundo encantado, imagine o que é
sobrevoá-los suavemente ao nascer do sol. Os olhos falam por si e não há
grandes conversações dentro da cesta, que transporta cerca de 15 pessoas.
Apenas se ouve a voz do comandante que vai dando as coordenadas de navegação. Momentos
há em que quase podemos tocar as rochas macias e outros em que já estamos a 900
metros de altitude. E uma vez em terra firme, a nossa cabeça vai continuar nas
nuvens nos próximos dias.
Mas Capadócia é também sinónimo de gastronomia. Depois
de experimentar quatro restaurantes da pequena vila, aceito o conselho de um
jovem chef inglês que, tal como eu,
viaja sozinho. “Trust me! Everything was so good, even the fruit”. A
curiosidade aguça o meu apetite e parto em busca do restaurante Pumpkin. Apesar
do selo de qualidade do Trip Advisor,
situa-se fora do circuito turístico de Göreme. No entanto, é fácil encontrá-lo.
Basta procurar, na avenida principal, pelas lâmpadas em forma de abóboras que
adornam a entrada.
Detenho-me à porta, enquanto espero pela companhia
para o jantar. A noite está fria e o dono convida-me para entrar. Recuso
gentilmente e recebo em troca um chá e dois dedos de conversa. Perdi a conta à
quantidade de chás que bebi desde que cheguei à Turquia, mas Ozi debita com
orgulho os números de um dia normal: 20 chávenas grandes e 40 na çay bardagi,
a típica chávena turca. Um número necessário para o homem dos sete
instrumentos. No pequeno e acolhedor restaurante, Ozi é cozinheiro, empregado
de mesa, ouvinte e até artista em part-time.
As abóboras de vários tamanhos, cores e feitios são da sua autoria.
O jantar não defrauda as expetativas de uma
portuguesa, duas chinesas e uma japonesa, tendo sido elogiado das entradas à
sobremesa. A minha estadia na Capadócia termina assim da melhor forma, ou seja,
à mesa.
Dos gatos de Ayasofya às cores do Grande Bazar
Há gatos que passeiam vagarosamente, roubando o
protagonismo aos milhões de mosaicos bizantinos e às dezenas de candeeiros
suspensos de Ayasofya. Os felinos fazem as delícias dos visitantes e há mesmo
quem já tenha dedicado um blog a um dos gatos residentes.
No museu, que foi em tempos catedral e mesquita,
decorrem trabalhos de recuperação, fato que não diminui a magnificência deste
ícone islâmico, mas apenas obriga os turistas a encontrarem melhores ângulos fotográficos.
Nas imediações, não é difícil falhar,
consecutivamente, a entrada na Mesquita Azul. As pausas para as orações obrigam
ao cumprimento de horários rígidos, mas numa cidade onde as mesquitas abundam em
número em tamanho, a opção “não turística” também é obrigatória. Descalce os
sapatos, coloque um véu se for mulher, e entre à descoberta.
A caminho do Grande Bazar e do mercado das
especiarias esquecemos o mapa no fundo da mochila. Está na hora de nos sentirmos
maravilhosamente perdidos nestes mercados encantados de portas imponentes e
longas avenidas de lojas. Há de tudo aqui, incluindo as histórias dos
comerciantes servidas com chá feito na hora.
Não me vou daqui embora sem recarregar energias num Hamam. Há para todos os
gostos, dos mais requintados em Sultanahmet ou Galatasary, aos mais bairristas.
Opto por jogar em casa. No Hamam de Besiktas, homens de um lado, mulheres do
outro, escolheram o final do dia para o ritual de purificação do corpo. Três pesadas
senhoras lavam e massajam dos pés à cabeça, enquanto falam entre si.
Em Taksim há uma marcha silenciosa que assinala o
Dia Internacional da Mulher. Foi organizada à revelia das leis que proíbem qualquer
tipo de manifestação nesta praça, palco de protestos no verão passado. Há
polícias de intervenção e jatos de água apontados às centenas de mulheres
presentes. É mais um sinal de revolta de uma geração de jovens que condena, as
medidas implementadas no segundo mandato de Erdoğan, como o fim da interrupção
voluntária da gravidez ou a obrigatoriedade de três filhos por casal. O
Facebook, Twitter e o Youtube estão na iminência de serem bloqueados.
“O clima é de paz podre”, conta Nuno Mendes Santos
que acabo de conhecer em Besiktas. A viver e a trabalhar em Istambul, este
jovem português acredita que a crise política na Turquia só terá fim à vista
quando Erdoğan sair do governo ou quando se solidificar totalmente, destruindo
tudo à sua volta. “Sabes que tens tudo a perder por te juntar às manifestações,
mas também sabes que se não o fizeres, já o perdeste à partida”.
Cai a noite e tudo parece voltar ao normal. Ainda há
tempo para um último chá em Istambul.
(Publicado no P3 do Público)
Fotos: Cátia Castro