Milan Rados saiu da ex-Jugoslávia pouco antes do início da guerra. Não sei quem deixou para trás nem de que lado estava. Naquela altura, dada a falta de maturidade histórica e até mesmo geográfica, os Balcãs eram para mim uma incógnita e os conflitos dos movimentos separatistas um quebra-cabeças. Para uma portuguesa que nunca conheceu a guerra tudo era vago e distante. Onde fica mesmo a Bósnia-Herzegovina? Agora já sabemos.
De Belgrado a Sarajevo são oito longas horas de viagem. Sou a única turista a bordo de um autocarro onde ninguém fala inglês, apesar do esforço do motorista em avisar-me para as pausas de "ten minutas"; "cigarette pausa"; "passaport control" ou simplesmente "pausa".
Na fronteira a polícia faz o habitual varrimento das identificações dos passageiros sérvios e bósnios e demora-se no meu passaporte. "Portugal? What’s your purpose? What’s your occupation? Nothing to declare?". "Estou aqui de férias". Ao que recebo um olhar confuso e um seco "okay" segundos depois.
Chegada à capital, ignoro os conselhos para não apanhar táxi na rua, porque os preços são inflacionados para turistas, e dou por mim dentro de um carro digno de um filme de Kusturica. O taxista não fala inglês, mas enquanto descemos a colina aponta para o vale onde repousa Sarajevo e exclama: "Mina…Kabum!" Alguém ficou amputado durante a guerra. Mas quem? Um amigo? Um familiar? Uma vez mais a barreira linguística não me deixa avançar nas conversações e sigo o resto da curta viagem até ao hostel a desculpar-me em inglês.
Sarajevo, a Jerusalém Europeia
Sarajevo é chamada a "Jerusalém europeia" graças à fusão de culturas e religiões bem expressa na rua Ferhadija. A parte Este é composta por edifícios do período otomano e a Oeste impera o estilo austro-húngaro. Juntas numa panorâmica parecem ruas diferentes. Mais de 500 anos de história atravessam Baščaršija, o coração desta cidade onde outrora viveram pacificamente católicos, ortodoxos, judeus e muçulmanos. Num espaço de poucos metros pode visitar uma mesquita, uma igreja ortodoxa, uma catedral, uma sinagoga ou um bazar, construções que remontam na sua maioria ao século XVI.
Não muito longe é-nos recordado que foi aqui que começou a I Guerra Mundial, com o assassinato do arquiduque austro-húngaro, Francisco Fernando e sua esposa, Sofia. O local, situado a escassos metros da Ponte Latina, é assinalado com uma placa onde o meu guia aproveita para aligeirar a efeméride com uma anedota. Um dia um homem passava por ali, pelas margens do Miljacka. Do rio barrento, que atravessa a cidade, avista um peixe que lhe concede apenas um desejo. O pobre pede para ser o homem mais poderoso do império e acorda no dia seguinte no lugar do arquiduque Francisco Fernando, de partida para Sarajevo.
O meu jovem guia não espera gargalhadas. Rijad é bósnio muçulmano à semelhança da maioria da população bósnia, aproximadamente 53% contra cerca de 30% ortodoxos e 8% católicos. Hoje enverga com orgulho a camisola do número 11 da seleção nacional, Dzeko. É a primeira vez na história que a Bósnia se qualifica para um Mundial de futebol, sendo porventura um dos momentos desportivos mais altos, depois dos Jogos Olímpicos de Inverno de 1984. Rijad recorda-me que há quatro anos a selecção azul e branca foi afastada por Portugal nos "playoffs". Na impossibilidade de ir ao Brasil, o estudante de engenharia vai seguir os jogos no café com os amigos.
Com ou sem Mundial, aqui parece que ninguém trabalha. As esplanadas estão apinhadas a qualquer hora. Os bósnios gostam de beber café, apesar de não saber a diferença entre o café bósnio e o turco. Chego à conclusão de que depende de quem o prepara, mas o melhor é não entrar em dilemas.
(continua...)