quinta-feira, 10 de julho de 2014

Mostar, um postal quase perfeito



Nos Balcãs redescobre-se o prazer de viajar de comboio. As viagens são demoradas, mas não há pressa em chegar ao destino e sempre podemos admirar a paisagem nos cerca de 130 quilómetros que ligam Sarajevo a Mostar. As carruagens são antigas e ainda possuem compartimentos fechados. Divido o meu com um rapaz de Singapura e uma senhora bósnia que fuma descontraidamente o seu cigarro. O comboio entra no túnel e toda a carruagem fica às escuras. Não consigo imaginar melhor cenário para um filme de suspense.
A vinda a Sul está relacionada com um símbolo da guerra na Bósnia. A Ponte Velha foi destruída em 1993, dividindo a cidade em bósnios-croatas e bósnios-muçulmanos, tendo sido recuperada uma década depois. Em conversa com locais pude notar uma certa divisão no dia-a-dia dos habitantes, apesar de reinar um discurso de tolerância entre Ocidente e Oriente.
Um postal perfeito que pode admirar de vários ângulos, mas o melhor é subir ao topo do minarete da Mesquita Koshi Mehmed Pasha, onde se tem uma visão de 360 graus sobre a ponte e o centro histórico, considerados Património Mundial da UNESCO. Com sorte pode ver daqui o famoso salto dos rapazes de Mostar. Uma tradição iniciada há vários anos e que possui diferentes versões, sendo uma delas uma forma de impressionar as raparigas da cidade.



Todos os dias, dois ou três rapazes de corpo atlético recolhem dinheiro entre os turistas antes de se lançarem no rio. O mínimo são 50 euros por um salto de 21 metros, mas os valores podem aumentar mediante a audiência, que espera impacientemente nas margens e no tabuleiro da ponte. Máquinas fotográficas e telemóveis prontos a registar o melhor momento de um salto de adrenalina ou de hábito.
Enquanto espero por mais um salto sento-me à sombra, numa das muitas esplanadas que embelezam as margens do Neretva. Um prazer que não é só obrigatório como revigorante em dias quentes embalados ao som de Sevdah. A música tradicional bósnia, que a emprega de mesa explica, está entre os blues e o nosso Fado. A nota dominante é o amor. Talvez a única coisa que nenhuma guerra pode destruir.


Crónica publicada no P3, jornal Público

quinta-feira, 3 de julho de 2014

A guerra já não mora aqui!


A guerra já não mora aqui, apenas as armas. Armin, nome fictício, comprou uma Kalashnikov numa noite de bebedeira por 250 euros. Não é que se orgulhe da aquisição, mas a AK-47 foi o símbolo da guerra na Bósnia. Conheci-o num bar, juntamente com dois turistas da Nova Zelândia e dos Estados Unidos, que lembravam a famosa música de Goran Bregovic: Kalashnikov. Desafiado a mostrar a reputada arma leva-nos até ao seu pequeno apartamento onde preserva o fuzil no quarto. Não está carregada e parece não ser usada há muito tempo, dado o estado de conservação. Passa de mãos em mãos. São tiradas fotografias. Há ânsia de materializar o momento. Afinal, qual é a probabilidade de numa viagem aos Balcãs acabar o dia a segurar uma Kalashnikov?
Armin parece estar familiarizado com o funcionamento e explica como posicionar o corpo e usar a mira. É estranho segurar uma arma tão mortífera. Notando o meu ar pouco à vontade, pergunta-me se não serei uma espia e tranquiliza-me: "A guerra já acabou! Agora só há corrupção." A palavra que anda na boca de todos, sobretudo dos mais jovens que acusam o Governo pelo estado da nação. A Bósnia possui três presidentes e 14 ministros. Um número generoso para um país de dimensões tão pequenas.
Mas ir a Sarajevo é sobretudo não esquecer a guerra. Há ainda edifícios cravados pelas balas e uma chama acesa 365 dias para lembrar as milhares de vítimas. O Túnel da Esperança, única forma de abastecer a cidade durante do cerco de 92/95 e a cidade olímpica, palco de batalha, são reminiscências de um passado assustadoramente recente.

Não obstante à importância de cada esquina, numa cidade com as medidas certas, a Galeria Memorial de Srebrenica é indubitavelmente um dos locais mais comoventes. A 11 de Junho de 1995, nesta localidade que faz fronteira com a Sérvia, ocorreu um dos piores genocídios depois da II Guerra Mundial. O massacre de mais oito mil bósnios muçulmanos, a maioria homens e rapazes, pelas mãos do exército Bósnio da Sérvia. Com as cheias que se abateram em Maio e que fizeram subir o nível das águas, foram descobertos mais corpos.
Ver as fotos de Tarik Samarah e ouvir os testemunhos dos sobreviventes deixa-nos com um nó na garganta. Quando saímos já não somos os mesmos.


segunda-feira, 30 de junho de 2014

Bósnia — a perfeita desconhecida!

Durante os primeiros anos de faculdade tive um professor de história contemporânea nascido na Bósnia. Um homem de olhos claros, barriga proeminente, ora de sorriso fácil ora rezingão, e com um sotaque que até então nunca tinha escutado. Apelidava-nos carinhosamente de "cervejeiros", talvez porque soubesse que entre estudar o conflito israelo-palestiniano e copos, a escolha dos seus alunos portugueses era demasiado óbvia.

Milan Rados saiu da ex-Jugoslávia pouco antes do início da guerra. Não sei quem deixou para trás nem de que lado estava. Naquela altura, dada a falta de maturidade histórica e até mesmo geográfica, os Balcãs eram para mim uma incógnita e os conflitos dos movimentos separatistas um quebra-cabeças. Para uma portuguesa que nunca conheceu a guerra tudo era vago e distante. Onde fica mesmo a Bósnia-Herzegovina? Agora já sabemos.

De Belgrado a Sarajevo são oito longas horas de viagem. Sou a única turista a bordo de um autocarro onde ninguém fala inglês, apesar do esforço do motorista em avisar-me para as pausas de "ten minutas"; "cigarette pausa"; "passaport control" ou simplesmente "pausa".

Na fronteira a polícia faz o habitual varrimento das identificações dos passageiros sérvios e bósnios e demora-se no meu passaporte. "Portugal? What’s your purpose? What’s your occupation? Nothing to declare?". "Estou aqui de férias". Ao que recebo um olhar confuso e um seco "okay" segundos depois.

Chegada à capital, ignoro os conselhos para não apanhar táxi na rua, porque os preços são inflacionados para turistas, e dou por mim dentro de um carro digno de um filme de Kusturica. O taxista não fala inglês, mas enquanto descemos a colina aponta para o vale onde repousa Sarajevo e exclama: "Mina…Kabum!" Alguém ficou amputado durante a guerra. Mas quem? Um amigo? Um familiar? Uma vez mais a barreira linguística não me deixa avançar nas conversações e sigo o resto da curta viagem até ao hostel a desculpar-me em inglês.

Sarajevo, a Jerusalém Europeia




Sarajevo é chamada a "Jerusalém europeia" graças à fusão de culturas e religiões bem expressa na rua Ferhadija. A parte Este é composta por edifícios do período otomano e a Oeste impera o estilo austro-húngaro. Juntas numa panorâmica parecem ruas diferentes. Mais de 500 anos de história atravessam Baščaršija, o coração desta cidade onde outrora viveram pacificamente católicos, ortodoxos, judeus e muçulmanos. Num espaço de poucos metros pode visitar uma mesquita, uma igreja ortodoxa, uma catedral, uma sinagoga ou um bazar, construções que remontam na sua maioria ao século XVI.

Não muito longe é-nos recordado que foi aqui que começou a I Guerra Mundial, com o assassinato do arquiduque austro-húngaro, Francisco Fernando e sua esposa, Sofia. O local, situado a escassos metros da Ponte Latina, é assinalado com uma placa onde o meu guia aproveita para aligeirar a efeméride com uma anedota. Um dia um homem passava por ali, pelas margens do Miljacka. Do rio barrento, que atravessa a cidade, avista um peixe que lhe concede apenas um desejo. O pobre pede para ser o homem mais poderoso do império e acorda no dia seguinte no lugar do arquiduque Francisco Fernando, de partida para Sarajevo.



O meu jovem guia não espera gargalhadas. Rijad é bósnio muçulmano à semelhança da maioria da população bósnia, aproximadamente 53% contra cerca de 30% ortodoxos e 8% católicos. Hoje enverga com orgulho a camisola do número 11 da seleção nacional, Dzeko. É a primeira vez na história que a Bósnia se qualifica para um Mundial de futebol, sendo porventura um dos momentos desportivos mais altos, depois dos Jogos Olímpicos de Inverno de 1984. Rijad recorda-me que há quatro anos a selecção azul e branca foi afastada por Portugal nos "playoffs". Na impossibilidade de ir ao Brasil, o estudante de engenharia vai seguir os jogos no café com os amigos.

Com ou sem Mundial, aqui parece que ninguém trabalha. As esplanadas estão apinhadas a qualquer hora. Os bósnios gostam de beber café, apesar de não saber a diferença entre o café bósnio e o turco. Chego à conclusão de que depende de quem o prepara, mas o melhor é não entrar em dilemas.

(continua...)

sexta-feira, 27 de junho de 2014

Viajar

Viajar! Perder países!
Ser outro constantemente,
Por a alma não ter raízes
De viver de ver somente!

Não pertencer nem a mim!
Ir em frente, ir a seguir
A ausência de ter um fim,
E a ânsia de o conseguir!

Viajar assim é viagem.
Mas faço-o sem ter de meu
Mais que o sonho da passagem.
O resto é só terra e céu.




Fernando Pessoa, 20-9-1933

segunda-feira, 14 de abril de 2014

It's gonna a be a long walk


Veremos se depois de 400 páginas aprendo qualquer coisinha com o Nobel da Economia. Deixei o Don DeLillo e Amos Oz em stand-by. Já lá vamos!

sexta-feira, 11 de abril de 2014

"Não faças o português!"




No início foi engraçado, mas logo se tornou numa associação irritante. Após uma centena de vezes a ouvir “Non fai il portoghese! Não faças o português!” dei por mim a pensar que não gozamos de boa fama, uma vez que para a maioria dos italianos a expressão está ligada a “mau pagador” ou “aquele que quer alguma coisa à borla”.

Um pensamento que me acompanhou durante estes dois anos em que estou a viver em Itália. Se não era o Cristiano Ronaldo vs. Mourinho, era a famigerada expressão. Seria eu que regateava demasiado? Mas afinal quem não gosta de borlas? E porquê apenas os portugueses e não outras nacionalidades? Ninguém, novos e velhos, me deu até ao dia de hoje uma resposta convincente. Apenas um encolher de ombros e um sistemático: “É o que se costuma dizer”.

Era uma espécie de inquietação. Uma necessidade de limpar a imagem de um povo que não sabe outra coisa senão pagar. Pagar à "troika", pagar pelos erros dos governos, pagar cada vez mais impostos, pagar para trabalhar. E nós, povo obediente e cumpridor, pagamos. Tudo e mais alguma coisa.

Face a este facto, e graças à pesquisa de uma amiga, foi possível devolver a verdade, ou pelo menos, a boa fama aos portugueses. Assim, é preciso recuarmos à Roma do século XVIII. O embaixador de Portugal convidou os portugueses aí residentes a assistirem gratuitamente a um espectáculo teatral, a ter lugar no Teatro Argentina, onde para entrar bastava declarar a nacionalidade portuguesa. Não era necessário convite formal. Ora, aproveitando-se desta situação muitos romanos fizeram-se passar por portugueses, usufruindo de um serviço para o qual não tinham título. Daí nasceu a expressão ainda hoje usada, embora por vezes incorretamente, “fazer o/de português”.

Mistério desvendado! Nesta história verídica os italianos foram os chicos-espertos, mas nós, portugueses, continuamos a ser os melhores pagadores da Europa.

Publicado no P3 do jornal Público
Crónica 

domingo, 6 de abril de 2014

Para que serve a Utopia?

O jornalista/escritor uruguaio Eduardo Galeano explica-nos o sentido da utopia, tantas vezes ligada  à palavra "impossível". 



terça-feira, 1 de abril de 2014

O Cinema é tão Belo (XV)


Michael Fassbender, in Shame

Todo o mundo cabe em Istambul


Por onde começar quando a cidade se chama Istambul? Torre de Babel, onde vivem cerca de 19 milhões de pessoas vindas dos quatro cantos do mundo. Não são números oficiais, mas apenas suspeitas daqueles que vêem a cidade a crescer, ao mesmo tempo que se multiplica o número de mesquitas e centros comerciais mandados erguer pelo atual governo.

As eleições municipais são já a 30 de Março e o ambiente está quente, sobretudo depois dos recentes escândalos de corrupção que envolvem o primeiro-ministro turco. Há 11 anos no poder, Recep Tayyip Erdoğan é acusado do desvio de mil milhões de euros dos cofres públicos.
Mas o que aqui nos traz faz-nos esquecer a situação política e os violentos protestos na Praça Taksim. Istambul significa a entrada num mundo onde se confundem o laico e o religioso, o místico e o moderno, o bairrista e o cosmopolita. Depois há a outra Turquia.

Um país que chegou até mim através dos filmes de Fatih Akin, da música de Shantel, das ilustrações de Selçuk Demirel, de uma telenovela brasileira e de dois hóspedes que recebi através da rede Couchsurfing.
À chegada a Istambul o que marca não é tanto a língua, aglutinante, mas antes o ritmo vibrante da cidade só interrompido pela pausa para o chá, ou “chay” em turco. Afinal, estamos com um pé na Europa e outro na Ásia à distância de um ferry ou de uma ponte.

Com tantas pontas soltas, o melhor é começarmos pelo início, ou seja, pelo pequeno-almoço, a maior e mais importante refeição do dia para os turcos. Portanto, não se espante se em vez de um convite para jantar receber um convite para o pequeno-almoço. À mesa, sal. Muito sal. Pão, folhados de queijo, pimentos, mais três tipos diferentes de queijo, azeitonas, tomate, pepinos e, claro, chá em abundância.
Em Besiktas, onde fico alojada, no domingo de manhã as pessoas fazem fila nos cafés. No menu do pequeno-almoço há menemen, sucuk, simit… Vai ser assim durante toda a tarde, porque afinal a noite foi longa para os mais jovens em Istiklal.

Bem conhecido dos portugueses, Besiktas surge inevitavelmente associado ao clube de futebol. A águia à entrada do bairro mostra a importância do emblema preto e branco que se encontra na terceira posição do campeonato turco. Em Besiktas, bairro situado na zona de Bósforo, respira-se o verdadeiro dia-a-dia turco, feito sobretudo de comércio e restauração. No entanto, a nossa tour deve passar obrigatoriamente pela pérola do império otomano, Sultanahmet. É para lá que vou antes da partida para a Capadócia.

Cheira a peixe fresco na Ponte Galata. De manhã à noite, faça chuva ou sol, é o spot favorito dos pescadores de Istanbul, que religiosamente ocupam os poucos espaços deixados vagos no corrimão. Um ritual que muitos dizem ser de meditação, apenas quebrado por um doce tilintar. Ao fundo da ponte, já se ouve o vendedor ambulante de chá que apregoa “chay, chay, chay!”. No piso inferior do tabuleiro, os restaurantes preparam-se para receber mais uma enchente de turistas para almoço.
Perco-me umas horas no Palácio Topkapi, entre sultões da antiga Constantinopla e um Harém, outrora povoado por concubinas e eunucos. Não muito longe avisto a Mesquita Azul que chama os fiéis para a oração do início da tarde. É o Azan. Os turistas, esses são convidados a sair.
Sem pressas voltarei nos próximos dias a Sultanahmet.


Na Capadócia, “Natureza” escreve-se com letra maiúscula





De Istambul à Capadócia distam entre si 600km. Para os mais resistentes, as 10 horas no autocarro noturno passam a correr, mas se não abdicar de uma noite que seja em Istambul, um voo doméstico até Kayseri leva menos de uma hora.
Göreme é o ponto de partida de uma viagem que lhe promete arrancar muitos “Uaus” e “wow’s”, dependendo da nacionalidade. Mas será também um lugar onde pode, em silêncio, observar o incrível poder da natureza e talvez, porque nunca é tarde demais, fazer as pazes com ela.
Admiramos imensos vales: vermelhos, verdes, castanhos de onde se elevam imponentes formações rochosas, que os vulcões deram e o ser humano aproveitou, construindo há milhares de anos casas, igrejas, armazéns e abrigos. Património da Humanidade da UNESCO, o Museu ao Ar Livre de Göreme é apenas um exemplo do engenho dos monges cristãos, que aqui se fixaram no século III. É a maior concentração de grutas na região e dentro delas pode admirar os frescos com motivos religiosos, incluindo S. Jorge no seu cavalo.
Para trás deixo o complexo monástico e rumo a Göreme com o objetivo de confortar o estômago, mas a caminho sou atraída pelas enormes “chaminés” que compõem o “Love Valley”. Porque os olhos também comem, decido matar esta fome primeiro. Uma extraordinária paisagem cónica por onde podemos serpentear calmamente. Usadas sobretudo por agricultores, que ali conservavam colheitas, fazem parte de uma das muitas maravilhas da Capadócia, tal como Devrent, Ihlara e Pigeon Valleys.
Próxima paragem: cidade subterrânea de Kaymakli. Das existentes, trata-se da menos turística, mas curiosamente a maior horizontalmente, com oito níveis e cerca de duas mil divisões. Dentro, uma temperatura constante de 15 graus. Para perceber os meandros deste labirinto subterrâneo é necessária a ajuda de um guia, que se pode contratar no local. Só assim saberá, entre outras coisas, que Kaymakli era usada como abrigo em tempo de guerra e que possuía um avançado sistema de ventilação, que para além de ar fresco servia como ponto de vigia.



Não escondo o entusiasmo pela viagem em balão de ar quente que me obriga a acordar às cinco da manhã. A oferta é muita e a sugestão é que não aceite preços na ordem dos 150 euros por uma hora de voo. Na Turquia regatear é a palavra de ordem, logo faça uso disso. É que os valores podem cair para os 80 euros por pessoa.
Cartão de embarque na mão e de repente já estamos lá em cima, junto das dezenas de balões que pintam de cor os céus da Capadócia. Se calcorrear estes vales é entrar num mundo encantado, imagine o que é sobrevoá-los suavemente ao nascer do sol. Os olhos falam por si e não há grandes conversações dentro da cesta, que transporta cerca de 15 pessoas. Apenas se ouve a voz do comandante que vai dando as coordenadas de navegação. Momentos há em que quase podemos tocar as rochas macias e outros em que já estamos a 900 metros de altitude. E uma vez em terra firme, a nossa cabeça vai continuar nas nuvens nos próximos dias.


Mas Capadócia é também sinónimo de gastronomia. Depois de experimentar quatro restaurantes da pequena vila, aceito o conselho de um jovem chef inglês que, tal como eu, viaja sozinho. “Trust me! Everything was so good, even the fruit”. A curiosidade aguça o meu apetite e parto em busca do restaurante Pumpkin. Apesar do selo de qualidade do Trip Advisor, situa-se fora do circuito turístico de Göreme. No entanto, é fácil encontrá-lo. Basta procurar, na avenida principal, pelas lâmpadas em forma de abóboras que adornam a entrada.
Detenho-me à porta, enquanto espero pela companhia para o jantar. A noite está fria e o dono convida-me para entrar. Recuso gentilmente e recebo em troca um chá e dois dedos de conversa. Perdi a conta à quantidade de chás que bebi desde que cheguei à Turquia, mas Ozi debita com orgulho os números de um dia normal: 20 chávenas grandes e 40 na çay bardagi, a típica chávena turca. Um número necessário para o homem dos sete instrumentos. No pequeno e acolhedor restaurante, Ozi é cozinheiro, empregado de mesa, ouvinte e até artista em part-time. As abóboras de vários tamanhos, cores e feitios são da sua autoria.
O jantar não defrauda as expetativas de uma portuguesa, duas chinesas e uma japonesa, tendo sido elogiado das entradas à sobremesa. A minha estadia na Capadócia termina assim da melhor forma, ou seja, à mesa.

Dos gatos de Ayasofya às cores do Grande Bazar




Há gatos que passeiam vagarosamente, roubando o protagonismo aos milhões de mosaicos bizantinos e às dezenas de candeeiros suspensos de Ayasofya. Os felinos fazem as delícias dos visitantes e há mesmo quem já tenha dedicado um blog a um dos gatos residentes.
No museu, que foi em tempos catedral e mesquita, decorrem trabalhos de recuperação, fato que não diminui a magnificência deste ícone islâmico, mas apenas obriga os turistas a encontrarem melhores ângulos fotográficos.
Nas imediações, não é difícil falhar, consecutivamente, a entrada na Mesquita Azul. As pausas para as orações obrigam ao cumprimento de horários rígidos, mas numa cidade onde as mesquitas abundam em número em tamanho, a opção “não turística” também é obrigatória. Descalce os sapatos, coloque um véu se for mulher, e entre à descoberta.


A caminho do Grande Bazar e do mercado das especiarias esquecemos o mapa no fundo da mochila. Está na hora de nos sentirmos maravilhosamente perdidos nestes mercados encantados de portas imponentes e longas avenidas de lojas. Há de tudo aqui, incluindo as histórias dos comerciantes servidas com chá feito na hora.
Não me vou daqui embora sem recarregar energias num Hamam. Há para todos os gostos, dos mais requintados em Sultanahmet ou Galatasary, aos mais bairristas. Opto por jogar em casa. No Hamam de Besiktas, homens de um lado, mulheres do outro, escolheram o final do dia para o ritual de purificação do corpo. Três pesadas senhoras lavam e massajam dos pés à cabeça, enquanto falam entre si.

Em Taksim há uma marcha silenciosa que assinala o Dia Internacional da Mulher. Foi organizada à revelia das leis que proíbem qualquer tipo de manifestação nesta praça, palco de protestos no verão passado. Há polícias de intervenção e jatos de água apontados às centenas de mulheres presentes. É mais um sinal de revolta de uma geração de jovens que condena, as medidas implementadas no segundo mandato de Erdoğan, como o fim da interrupção voluntária da gravidez ou a obrigatoriedade de três filhos por casal. O Facebook, Twitter e o Youtube estão na iminência de serem bloqueados.

“O clima é de paz podre”, conta Nuno Mendes Santos que acabo de conhecer em Besiktas. A viver e a trabalhar em Istambul, este jovem português acredita que a crise política na Turquia só terá fim à vista quando Erdoğan sair do governo ou quando se solidificar totalmente, destruindo tudo à sua volta. “Sabes que tens tudo a perder por te juntar às manifestações, mas também sabes que se não o fizeres, já o perdeste à partida”.
Cai a noite e tudo parece voltar ao normal. Ainda há tempo para um último chá em Istambul.



(Publicado no P3 do Público)
Fotos: Cátia Castro

sábado, 22 de março de 2014

O cinema é tão belo (XIV)


Tony Leung Chiu-Wai, In the Mood for Love

Sal, no stress fora de portas


(Artigo publicado no Fugas do Jornal Público, 18.01.14)


Uma viagem a Cabo Verde, para além das portas dos tudo incluído, em busca das gentes da Ilha do Sal.

Sempre tive uma certa repulsa a resorts e ao conceito "all inclusive". As minhas suspeitas confirmaram-se. Não se contacta tão de perto com as gentes. 
Não se tropeça nos restaurantes de comida tradicional. Somos reféns dos horários e das ementas. Quando queremos é estar refastelados nas espreguiçadeiras a ler um livro, somos bombardeados pelos animadores ou pela música de veraneio. Confere.
Mas quando não se pode fugir a esta realidade, ansiada por tantos, há que tentar tirar partido do melhor dos dois mundos. E o melhor parece estar nas horas que passamos nas ruas. Por isso a solução é esquivar-se de mansinho entre um banho de sol e um mergulho no Atlântico agitado.
Foi um last minute que me levou até à Ilha do Sal em Dezembro. À frente na corrida estavam Zanzibar e Maurícias, mas as horas de voo e o orçamento apertado levaram-me a desistir desta ideia difícil de concretizar em apenas uma semana de férias.

A cidade mais turística da ilha do Sal é Santa Maria, que tem cerca de oito mil habitantes. Ainda a palmilhar terreno, e terra batida também, encontramos um rosto sorridente. É Max quem nos interpela. “Ciao bella! Italiana? Francesa?” E quando finalmente percebe que somos turistas, mas portuguesas, a conversa entra num ritmo diferente. Tem quarenta e poucos anos. “Mas não pareço”. De facto. “Tenho quatro filhos. O mais velho tem 19 anos, mas ainda estuda.”
Como tantos cabo-verdianos, Max trabalhou na construção civil em Portugal. “Estive em Setúbal um ano. Conheces? Voltei. Aqui é mais devagarinho. No stress.” E conduz-nos até à sua cooperativa artística, uma pequena loja que divide com mais três amigos. Desde a tartaruga, símbolo da ilha, até aos colares de missangas, passando pelas estátuas do funaná feitas em madeira, o importante é tentar vender algo. E agora? Regateamos. “Por ser para ti, que és portuguesa, faço um desconto. Se fosse um patrício cobrava 50 euros. Para ti faço 40.” Terminámos as negociações em 15 euros. Dois beijinhos e um abraço e seguimos o nosso passeio pelas ruas das “casa-alegria”.
Tropeçamos em conversas, invariavelmente com intuito comercial, mas que logo revelam a simpatia dos cabo-verdianos pelo país-irmão.
No Sal, onde se pode dizer que 99% da população é benfiquista, não faltam as bandeiras e t-shirts do clube de Lisboa e da selecção nacional portuguesa. Uma foto com Fábio Coentrão, que esteve na ilha em férias, é orgulhosamente exibida pelos muitos vendedores do mercado de artesanato de Santa Maria. Mas o rei é Cristiano Ronaldo, confessa Jorge, que seguiu atento o jogo com a Suécia pela televisão. “No final do jogo tomei quatro whiskies para comemorar”, confessa, numa gargalhada que o tomba para trás.
Daqui até à paragem de autocarros improvisada que nos conduzirá a Espargos é notória a presença chinesa pela ilha, que se intensificou nos últimos 16 anos. Para além das lojas, os chineses estão actualmente a construir um novo liceu para Santa Maria. Já os italianos investem maioritariamente em resorts e restaurantes.

Cruzamos a planície árida com o Monte Leão ao nosso lado. Os cabo-verdianos deram este nome ao monte porque viam nele a figura de um leão sentado. Depois de várias idas e voltas entre Santa Maria e a capital, é impossível acabar com esta associação. Um leão. Não poderia ser outra coisa.
Já em Espargos, o ritmo é diferente. Pessoas que regressam do trabalho e se demoram nos passeios em frente aos cafés a saborear a cerveja nacional ou, invariavelmente, uma mini de marca portuguesa. Aqui os turistas raramente chegam sozinhos. Em grupos, são largados nos mercados de artesanato e terminam o giro no miradouro. Mas, se houver tempo, que o há de sobra, é preciso regressar e demorar-se. Mesmo que aparentemente tudo indique que Espargos não passa de uma cidade-dormitório. Só assim se pode sentir o pulso à morabeza deste povo. Um sentimento tão difícil de explicar como a nossa saudade.
É sentar na praça principal e ficar a ver as mulheres que carregam pesados cestos de bananas à cabeça, as donas de casa que compram o peixe da manhã em cada esquina, os velhos que jogam cartas a escudos, as crianças que chegam da escola no seu uniforme de azul bebé, os bares onde mais tarde se pode ouvir música ao vivo.

Alguém chama por nós e nos lembra que é tempo de partir, ainda que a vontade seja de ficar. “Santa Maria?” Na carrinha de pouco mais de dez lugares, somos apenas duas. Duas turistas. Mas num giro de cinco voltas pela cidade, umas quantas paragens, buzinadelas, gritos em português e crioulo “Santa Maria? Santa Maria?”, rapidamente chegamos à quinzena.
Nessa noite os bares da cidade mais turística de Sal estão, como é habitual, cheios de surfistas, que conversam alegremente com locais. Mas a música não se ouve no exterior como nos dias anteriores. Alguém conta que o país está de luto. Morreu um homem muito importante para Cabo Verde. Pergunto como se chama. Nelson Mandela. Certo. Estamos em África, ainda que em todo o tempo me tenha sentido em casa.