(Artigo publicado no Fugas do Jornal Público, 18.01.14)
Uma viagem a Cabo Verde, para além das portas dos tudo incluído, em busca das gentes da Ilha do Sal.
Sempre tive uma certa repulsa a resorts e ao conceito "all inclusive". As minhas suspeitas confirmaram-se. Não se contacta tão de perto com as gentes.
Não se tropeça nos restaurantes de comida tradicional. Somos reféns dos horários e das ementas. Quando queremos é estar refastelados nas espreguiçadeiras a ler um livro, somos bombardeados pelos animadores ou pela música de veraneio. Confere.
Mas quando não se pode fugir a esta realidade, ansiada por tantos, há que tentar tirar partido do melhor dos dois mundos. E o melhor parece estar nas horas que passamos nas ruas. Por isso a solução é esquivar-se de mansinho entre um banho de sol e um mergulho no Atlântico agitado.
Foi um last minute que me levou até à Ilha do Sal em Dezembro. À frente na corrida estavam Zanzibar e Maurícias, mas as horas de voo e o orçamento apertado levaram-me a desistir desta ideia difícil de concretizar em apenas uma semana de férias.
A cidade mais turística da ilha do Sal é Santa Maria, que tem cerca de oito mil habitantes. Ainda a palmilhar terreno, e terra batida também, encontramos um rosto sorridente. É Max quem nos interpela. “Ciao bella! Italiana? Francesa?” E quando finalmente percebe que somos turistas, mas portuguesas, a conversa entra num ritmo diferente. Tem quarenta e poucos anos. “Mas não pareço”. De facto. “Tenho quatro filhos. O mais velho tem 19 anos, mas ainda estuda.”
Como tantos cabo-verdianos, Max trabalhou na construção civil em Portugal. “Estive em Setúbal um ano. Conheces? Voltei. Aqui é mais devagarinho. No stress.” E conduz-nos até à sua cooperativa artística, uma pequena loja que divide com mais três amigos. Desde a tartaruga, símbolo da ilha, até aos colares de missangas, passando pelas estátuas do funaná feitas em madeira, o importante é tentar vender algo. E agora? Regateamos. “Por ser para ti, que és portuguesa, faço um desconto. Se fosse um patrício cobrava 50 euros. Para ti faço 40.” Terminámos as negociações em 15 euros. Dois beijinhos e um abraço e seguimos o nosso passeio pelas ruas das “casa-alegria”.
Tropeçamos em conversas, invariavelmente com intuito comercial, mas que logo revelam a simpatia dos cabo-verdianos pelo país-irmão.
No Sal, onde se pode dizer que 99% da população é benfiquista, não faltam as bandeiras e t-shirts do clube de Lisboa e da selecção nacional portuguesa. Uma foto com Fábio Coentrão, que esteve na ilha em férias, é orgulhosamente exibida pelos muitos vendedores do mercado de artesanato de Santa Maria. Mas o rei é Cristiano Ronaldo, confessa Jorge, que seguiu atento o jogo com a Suécia pela televisão. “No final do jogo tomei quatro whiskies para comemorar”, confessa, numa gargalhada que o tomba para trás.
Daqui até à paragem de autocarros improvisada que nos conduzirá a Espargos é notória a presença chinesa pela ilha, que se intensificou nos últimos 16 anos. Para além das lojas, os chineses estão actualmente a construir um novo liceu para Santa Maria. Já os italianos investem maioritariamente em resorts e restaurantes.
Cruzamos a planície árida com o Monte Leão ao nosso lado. Os cabo-verdianos deram este nome ao monte porque viam nele a figura de um leão sentado. Depois de várias idas e voltas entre Santa Maria e a capital, é impossível acabar com esta associação. Um leão. Não poderia ser outra coisa.
Já em Espargos, o ritmo é diferente. Pessoas que regressam do trabalho e se demoram nos passeios em frente aos cafés a saborear a cerveja nacional ou, invariavelmente, uma mini de marca portuguesa. Aqui os turistas raramente chegam sozinhos. Em grupos, são largados nos mercados de artesanato e terminam o giro no miradouro. Mas, se houver tempo, que o há de sobra, é preciso regressar e demorar-se. Mesmo que aparentemente tudo indique que Espargos não passa de uma cidade-dormitório. Só assim se pode sentir o pulso à morabeza deste povo. Um sentimento tão difícil de explicar como a nossa saudade.
É sentar na praça principal e ficar a ver as mulheres que carregam pesados cestos de bananas à cabeça, as donas de casa que compram o peixe da manhã em cada esquina, os velhos que jogam cartas a escudos, as crianças que chegam da escola no seu uniforme de azul bebé, os bares onde mais tarde se pode ouvir música ao vivo.
Alguém chama por nós e nos lembra que é tempo de partir, ainda que a vontade seja de ficar. “Santa Maria?” Na carrinha de pouco mais de dez lugares, somos apenas duas. Duas turistas. Mas num giro de cinco voltas pela cidade, umas quantas paragens, buzinadelas, gritos em português e crioulo “Santa Maria? Santa Maria?”, rapidamente chegamos à quinzena.
Nessa noite os bares da cidade mais turística de Sal estão, como é habitual, cheios de surfistas, que conversam alegremente com locais. Mas a música não se ouve no exterior como nos dias anteriores. Alguém conta que o país está de luto. Morreu um homem muito importante para Cabo Verde. Pergunto como se chama. Nelson Mandela. Certo. Estamos em África, ainda que em todo o tempo me tenha sentido em casa.
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