quinta-feira, 10 de julho de 2014

Mostar, um postal quase perfeito



Nos Balcãs redescobre-se o prazer de viajar de comboio. As viagens são demoradas, mas não há pressa em chegar ao destino e sempre podemos admirar a paisagem nos cerca de 130 quilómetros que ligam Sarajevo a Mostar. As carruagens são antigas e ainda possuem compartimentos fechados. Divido o meu com um rapaz de Singapura e uma senhora bósnia que fuma descontraidamente o seu cigarro. O comboio entra no túnel e toda a carruagem fica às escuras. Não consigo imaginar melhor cenário para um filme de suspense.
A vinda a Sul está relacionada com um símbolo da guerra na Bósnia. A Ponte Velha foi destruída em 1993, dividindo a cidade em bósnios-croatas e bósnios-muçulmanos, tendo sido recuperada uma década depois. Em conversa com locais pude notar uma certa divisão no dia-a-dia dos habitantes, apesar de reinar um discurso de tolerância entre Ocidente e Oriente.
Um postal perfeito que pode admirar de vários ângulos, mas o melhor é subir ao topo do minarete da Mesquita Koshi Mehmed Pasha, onde se tem uma visão de 360 graus sobre a ponte e o centro histórico, considerados Património Mundial da UNESCO. Com sorte pode ver daqui o famoso salto dos rapazes de Mostar. Uma tradição iniciada há vários anos e que possui diferentes versões, sendo uma delas uma forma de impressionar as raparigas da cidade.



Todos os dias, dois ou três rapazes de corpo atlético recolhem dinheiro entre os turistas antes de se lançarem no rio. O mínimo são 50 euros por um salto de 21 metros, mas os valores podem aumentar mediante a audiência, que espera impacientemente nas margens e no tabuleiro da ponte. Máquinas fotográficas e telemóveis prontos a registar o melhor momento de um salto de adrenalina ou de hábito.
Enquanto espero por mais um salto sento-me à sombra, numa das muitas esplanadas que embelezam as margens do Neretva. Um prazer que não é só obrigatório como revigorante em dias quentes embalados ao som de Sevdah. A música tradicional bósnia, que a emprega de mesa explica, está entre os blues e o nosso Fado. A nota dominante é o amor. Talvez a única coisa que nenhuma guerra pode destruir.


Crónica publicada no P3, jornal Público

quinta-feira, 3 de julho de 2014

A guerra já não mora aqui!


A guerra já não mora aqui, apenas as armas. Armin, nome fictício, comprou uma Kalashnikov numa noite de bebedeira por 250 euros. Não é que se orgulhe da aquisição, mas a AK-47 foi o símbolo da guerra na Bósnia. Conheci-o num bar, juntamente com dois turistas da Nova Zelândia e dos Estados Unidos, que lembravam a famosa música de Goran Bregovic: Kalashnikov. Desafiado a mostrar a reputada arma leva-nos até ao seu pequeno apartamento onde preserva o fuzil no quarto. Não está carregada e parece não ser usada há muito tempo, dado o estado de conservação. Passa de mãos em mãos. São tiradas fotografias. Há ânsia de materializar o momento. Afinal, qual é a probabilidade de numa viagem aos Balcãs acabar o dia a segurar uma Kalashnikov?
Armin parece estar familiarizado com o funcionamento e explica como posicionar o corpo e usar a mira. É estranho segurar uma arma tão mortífera. Notando o meu ar pouco à vontade, pergunta-me se não serei uma espia e tranquiliza-me: "A guerra já acabou! Agora só há corrupção." A palavra que anda na boca de todos, sobretudo dos mais jovens que acusam o Governo pelo estado da nação. A Bósnia possui três presidentes e 14 ministros. Um número generoso para um país de dimensões tão pequenas.
Mas ir a Sarajevo é sobretudo não esquecer a guerra. Há ainda edifícios cravados pelas balas e uma chama acesa 365 dias para lembrar as milhares de vítimas. O Túnel da Esperança, única forma de abastecer a cidade durante do cerco de 92/95 e a cidade olímpica, palco de batalha, são reminiscências de um passado assustadoramente recente.

Não obstante à importância de cada esquina, numa cidade com as medidas certas, a Galeria Memorial de Srebrenica é indubitavelmente um dos locais mais comoventes. A 11 de Junho de 1995, nesta localidade que faz fronteira com a Sérvia, ocorreu um dos piores genocídios depois da II Guerra Mundial. O massacre de mais oito mil bósnios muçulmanos, a maioria homens e rapazes, pelas mãos do exército Bósnio da Sérvia. Com as cheias que se abateram em Maio e que fizeram subir o nível das águas, foram descobertos mais corpos.
Ver as fotos de Tarik Samarah e ouvir os testemunhos dos sobreviventes deixa-nos com um nó na garganta. Quando saímos já não somos os mesmos.